domingo, 9 de maio de 2010

Entre curvas, retas e freadas - Episódio 2

Abri os olhos e, pela janela, vi pelo horizonte um alaranjado nascer do sol, com seus raios contornando as formações de nuvens brancas. No assento ao meu lado, Tarcísio, de fones de ouvido, estava entretido com seu laptop. Mais uma olhada pela janela e percebo que já estamos voando pela França, nosso destino final. O imponente Boeing 777 faz uma curva para a direita e consigo ver diversos quadriculados verdes lá embaixo. Devem ser as tradicionais propriedades produtoras de vinho do interior da França, pensei. Um dos melhores vinhos do mundo, diga-se. Olho para a minha esquerda, na fileira do meio do largo jato, e vejo, cada um para um lado, Reginaldo e Luis Henrique no melhor dos sonos.



Tarcísio percebe que acordei, tira seus fones e diz:

- Bom dia meninão!!

- Bom dia Tatá. O que está vendo aí?

- Estava lendo um pouco dos Audis R10. Esses caras ganharam quase tudo nesses últimos anos, esse carro é um capeta. Quero ver a gente ganhar desses merdas!!

- Pois é Tatá, eles são a equipe a ser batida.

- Estamos ferrados - ria Tatá, vendo um vídeo em que os Audis R15 chegavam nas três primeiras posições nas 24 Horas de Le Mans.

- Vamos ter de trabalhar muito para ganhar destes caras.

- É verdade - balançava a cabeça positivamente Tarcísio.

Audi R15, nosso principal concorrente


De repente, fomos interrompidos pelas comissárias de bordo, que nos serviriam o café da manhã. Uma bela italianinha de olhos azuis, Camilla, nos atenderia. No cardápio, muitas frutas e uma excelente tábua de queijos, talvez uma homenagem da companhia aérea ao país de destino. Após o café, todos teriam de afivelar os cintos pois logo pousaríamos no aeroporto internacional Charles de Gaulle.



Ao desembarcarmos, encontramos com outro brasileiro, Jaime Mello, que corre também na Le Mans Series, só que na categoria GT2, de Ferrari F430. Ele nos deu as boas vindas a categoria e desejou boa sorte à nossa nova equipe.



Na minivan que nos levaria até Paul Ricard, pista onde aconteceria a primeira prova da temporada, víamos da janela o agitado trânsito parisiense. Reginaldo aponta para um simpático e antigo Citroen 2CV costurando alegremente o trânsito. A reação é de riso ao ver a agilidade do veterano carrinho no trânsito. Ao parar nos faróis, não deixamos também de admirar a beleza feminina francesa. Vemos uma linda moça de cabelos compridos sair de uma floricultura com um maço de flores coloridas. Foi inevitável não lembrar de cenas daqueles filmes "cults" europeus.



Ao chegarmos a Paul Ricard, a equipe Honda Team Brazil (inclusive nosso ilustre chefe de equipe Gil de Ferran) já estava instalada e providenciando os últimos ajustes no protótipo. Disputaríamos a categoria LMP1, dos protótipos mais rápidos. Correm nessa categoria o Audi R15, Aston Martin, Oreca Peugeot, Pescarolo Judd e o Peugeot 908. Ainda existem as categorias LMP2, de protótipos menos potentes e a GT2, onde correm Ferrari, Porsche, Corvete e outros esportivos. Mais dois dias, na sexta-feira, iríamos para a pista pela primeira vez, para os primeiros treinos livres.

O traçado de Paul Ricard


Como a prova era de apenas 8 horas, apenas dois pilotos poderiam participar. Na quinta-feira, os quatro pilotos, o chefe da equipe e os engenheiros decidiriam quem correria no fim de semana. E optamos por Tarcísio e Luis Henrique, que já correram nesta pista no passado. Eu e Reginaldo ficaríamos no pit wall, ao lado do Gil, acompanhando tudo.



Na sexta-feira pela manhã, o carro vai para a pista. Luis Henrique começa a série de voltas e o carro não apresenta problemas. Depois de uma hora de treino, ficamos com o quinto melhor tempo, atrás apenas dos dois Audis R15 e dos dois Peugeots 908.



No treino da tarde é Tarcísio quem pilotaria nosso protótipo. Tatá reclamava pelo rádio que o carro estava muito "traseiro". Gil de Ferran prontamente pede para ele voltar ao box, pois pediria aos mecânicos uma alteração na pressão dos pneus.



Tarcísio pára e os mecânicos empurram o carro para dentro da garagem. Fomos até lá para saber como estava o carro.



- Essa traseira dança pra caramba! - reclama Tarcísio, enquanto os mecânicos retiram a carenagem e "atacam" o carro.

- Alterando a pressão das gomas isso melhora! - diz Reginaldo.


Depois de 5 minutos, Tarcísio amarra o macacão, veste o capacete e entra no cockpit. Um mecânico ajuda a afivelar o cinto de 6 pontos enquanto outro coloca o volante e liga os fios do rádio em seu capacete. Um gesto com o indicador girando no ar faz o mecânico acionar o sistema pneumático na traseira e o V12 acorda, num ruído metálico. Três aceleradas fortes, para aumentar o giro do motor e Tarcísio sai da garagem para mais algumas voltas.



Todos olham para os monitores nos boxes nosso protótipo completar mais uma volta no circuito de Paul Ricard. Tarcísio livra um Porsche GT2 no final da reta de chegada e começa a sequência de curvas antes da grande reta oposta, a Mistral. O carro vira levemente à esquerda e começa a engolir o asfalto do retão. Depois de alguns segundos de pé embaixo, Tarcísio chega à placa de 100 metros. É hora de aplicar pressão nos freios e diminuir duas marchas, para contornar a rápida curva à direita, a Signes.



Antes de fazer tudo isso, a traseira do carro abaixa abruptamente, largando faíscas na pista pelo atrito do difusor com o asfalto. O carro dá uma guinada violenta para a direita e começa a rodar de traseira. Neste ponto, o carro chega a mais de 300 Km/h.


- Vai ser uma panca grande - pensei, franzindo a testa.



O carro começa a levantar vôo de traseira, levantando poeira da brita e da areia da área de escape. Imediatamente o carro chega à barreira de pneus e o carro bate o assoalho nela. O protótipo dá um giro no ar e cai de lado na brita. Capota duas vezes antes de cair de ponta cabeça no meio do poeirão que se formou por ali.


Olho para o meu lado e vejo Reginaldo com as mãos na cabeça. Instala-se um silêncio assustador nos boxes de Paul Ricard. Estão todos de olhos grudados nas telas espalhadas por todo o autódromo. Os fiscais e bandeirinhas franceses correm para o carro e prontamente iniciam, com cuidado, o levantamento do carro para a sua posição normal. Dá para ver que o carro ficou bastante destruído, mas o cockpit estava intacto.


De repente, Tarcísio sai do carro. Levanta-se e começa a sacudir a enorme quantidade de poeira do macacão. Seu capacete vermelho está todo coberto pela poeira amarelada da areia. Ele acena para os torcedores positivamente, o que deixa todos nós aliviados. Ele entra no carro médico em direção ao hospital da pista, para as checagens de rotina. Enquanto isso, o que sobrou do carro seguia de volta para os boxes em cima de um caminhão.


A direção da prova não permite que nenhum de nós se desloque até o centro médico. Então o que resta é esperar, apreensivos, a volta do Tarcísio para os boxes. Neste momento, os carros voltam para a pista para os 15 minutos finais do treino. Depois de meia hora, Tarcísio volta para os boxes. Com uma cara de poucos amigos, diga-se.


- Quando fui frear aquela merda virou de uma vez e não consegui mais controlar. Pensei que ia morrer. Eu só me fodo nessa merda! - lamenta Tarcísio, enquanto olha para os restos mortais do protótipo. Mas o importante é que ele não tinha sofrido nenhum arranhão e poderia correr normalmente. As investigações posteriores nos diriam que foi um semi-eixo que partiu-se. Um pedaço dele atingiu um braço da suspensão traseira, que quebrou e fez o carro rodar a mais de 300 Km/h.


Agora estávamos preocupados, pois as principais peças e todo o acerto estava no carro principal, que estava destruído. Teríamos de acertar o carro reserva para a classificação do sábado no resto da sexta-feira. Os mecânicos adentraram a madrugada, mas deixaram o carro reserva pronto para os treinos classificatórios.


Luiz Henrique seria o nosso piloto na classificação. O carro reserva, como era esperado, não reage positivamente e ficamos com a 9ª posição do grid. Éramos o último carro na nossa categoria. Os Audis e Peugeots estavam lá na frente, como de costume. Era preciso fazer uma corrida de recuperação para conseguir uma boa posição e pontos importantes no campeonato.


No final da tarde, nos reunimos com Gil de Ferran e com os engenheiros para traçarmos a estratégia para a corrida de 8 horas. De posse de todos os dados da telemetria, todos decidimos por mudar radicalmente o acerto do carro. Os engenheiros e mecânicos mais uma vez adentrariam a madrugada debruçados no protótipo e todos tínhamos a esperança de que todo este trabalho desse resultados na pista, no dia seguinte.



Domingo de manhã, o carro sai com Luis Henrique para as primeiras voltas do Warm-up. Todos ficam ansiosos para saber como está o carro depois das grandes mudanças no acerto. Depois de 5 voltas, Luis pára o carro na frente do nosso box e todos vão até lá para saber. Quando o moleque abre a viseira de seu capacete amarelo e preto, vimos pelo brilho de seus olhos que tínhamos boas notícias.


- O carro está muito bom, faz curva que é uma beleza!! - dizia Luis, para alegria e alívio de todos. Luis Henrique largaria e faria as primeiras quatro horas de prova. Tarcísio finalizaria a prova. Azar meu e do Reginaldo, que ficaríamos nos boxes vendo tudo. Iria faltar unhas para roer nessas 8 horas...



Luz vermelha, luz verde, largada!! Luiz sai para o meio e consegue passar dois protótipos da LMP2. Na reta oposta, já está em sexto, no meio da briga da nossa categoria LPM1. Mais uma hora de prova e pararia para reabastecer e trocar os pneus. Enquanto isso nosso segundo na prova, Tarcísio, relaxa no fundo dos boxes ouvindo músicas no seu I-Pod.



Depois das 4 primeiras horas, Luis Henrique está na quinta posição, 4 segundos atrás do quarto colocado, o Audi R15. Em primeiro está o Audi, em segundo o primeiro Peugeot e em terceiro o segundo Audi. É a hora da troca dos pilotos. Luis pára e Tarcísio assume o apertado cockpit. De pneus novos, passa a apertar o ritmo para chegar no Audi. Depois de meia hora de prova, consegue encostar no carro alemão. Agora era achar um lugar para passar. E foi justamente na freada em que se acidentou na sexta que Tatá coloca de lado e ultrapassa o terceiro colocado. Todos nos boxes vibram, inclusive Luis Henrique, que enxuga o suor do rosto segurando uma garrafinha de água, enquanto conversa com o engenheiro chefe.


Agora só faltam 20 minutos e estávamos em terceiro. De repente, vimos pelas telas o Peugeot 908, o terceiro colocado, encostar na área de escape com fumaça na parte de trás. Vibramos todos, agora éramos os segundos colocados!


Bandeira quadriculada! Festa na equipe! Muita alegria e vibração. No pódio, Luis e Tatá vibravam e salpicavam todos com champagne. A enorme garrafa foi entregue aos mecânicos, que bebericaram, um a um, como um prêmio de recompensa pelo fim de semana intenso e cansativo.


Reginaldo, em entrevista a um jornal francês, resumiu bem o que foi aquela segunda posição na corrida:


- Superamos um grave acidente na sexta e, graças aos nossos mecânicos, que trabalharam sem descanso esses três dias e aos nossos dois pilotos conseguimos este excelente resultado na nossa primeira prova.


Agora, era a hora de aprontar tudo e nos prepararmos para a próxima prova. Que não era qualquer prova: eram as tradicionais 24 Horas de Le Mans. Todos na equipe estavam ansiosos pela prova de longa duração mais famosa do mundo.


Bem, mas isso é assunto para o próximo episódio de "Entre curvas, retas e freadas", que vocês conferem só aqui no blog.


Até a próxima!

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