quinta-feira, 16 de junho de 2022

A epopeia brasileira nas 24 horas de Daytona de 1998



Organizar e disputar, com uma equipe totalmente brasileira, uma das principais provas de longa duração do mundo: as 24 Horas de Daytona. Parece mentira, mas isso aconteceu no já longínquo ano de 1998. Em uma ação poucas vezes vista no automobilismo brasileiro, a equipe Dener Motorsports, liderada por Dener Pires, e com o apoio da Porsche Brasil, levou toda a sua estrutura para os Estados Unidos e disputou a edição de 1998 das 24 Horas de Le Mans. Os pilotos destacados para a missão foram Flávio Trindade, Maurizio Sandro Sala, Regis Schuch e André Lara Resende, todos com estreita ligação com a marca alemã. O carro escolhido não poderia ser outro, senão o Porsche 911 GT2 em sua evolução 993, o último modelo da marca de Sttutgart que utilizou motorização refrigerada a ar. A classe na qual o time brasileiro disputaria a prova seria a GT2.


O paranaense Flávio Trindade conta como foi impactante a chegada a Daytona, em seu ótimo livro “Objetivo Definido”: “lá fomos nós, embarcamos em Guarulhos, fizemos escala em Atlanta e seguimos para Daytona. Não sabíamos que o aeroporto ficava ao lado do famoso circuito e, enquanto o avião se aproximava para a aterrisagem, ficamos observando a enormidade daquele autódromo, com gigantescas arquibancadas para 160.000 pessoas e suas duas gigantescas retas, com curvas super inclinadas. No interior do circuito, já estavam estacionados muitas centenas de trailers e motorhomes. Eram impressionantes sua grandeza e magnitude, e eu jamais havia visto nada parecido com aquela imagem.”




O Porsche 911 GT2 do time brasileiro ficou lindo nesta pintura!



Trindade era o único piloto do quarteto brasileiro que não havia andado no traçado misto de Daytona, que também abarca as curvas inclinadas do trecho oval. Mais um desafio para o piloto paranaense, que ele conseguiu enfrentar muito bem. O Porsche do time brasileiro tinha seu esquema de cores em um branco predominante e a bandeira do Brasil estilizada na frente e teto do carro. Uma pintura que marcou história!



Da esquerda para a direita, os cavaleiros do Porsche brasileiro: Flávio Trindade, André Lara Resente, Regis Schuch e Maurizio Sala



A história da equipe brasileira nas 24 Horas de Daytona de 1998 começou com dificuldades: O carro ficou preso na alfândega com problemas burocráticos de liberação. O time ficou dois dias sem o carro e perdeu os treinos iniciais. Quando o carro finalmente foi liberado, restava apenas um treino para o time brasileiro. Era hora de trabalhar duro e acertar o Porsche para a classificação e a prova, além da oportunidade dos quatro pilotos também se ambientarem ao carro e ao circuito.


O primeiro grande desafio do time brazuca na pista seria classificar o carro, o que eles conseguiram de forma magistral, com a terceira colocação na classe GT2. O feito foi de fato louvável, pois naquela edição, um total de mais de 130 carros tentavam a participação na corrida.


Chegava então o momento ápice: a corrida. Flávio Trindade conta os bastidores da prévia da prova em seu livro “Objetivo Definido”, aspas para ele: “as 11 horas da manhã fomos chamados para alinharmos a equipe ao lado de seus carros, todos de frente para o público, para escutar o Hino Nacional norte-americano, tocado pela Banda dos Fuzileiros Navais dos USA. Emocionante, todo mundo arrepiado.”




O Porsche brasileiro no train de corrida (o segundo na fila)



As primeiras horas de corrida transcorreram super bem para o time brasileiro e seu Porsche 911 GT2. Até que, por volta das 10 horas da noite, o piloto Regis Schuch, em um raro descuido, escapou da pista e bateu o carro brasileiro. As avarias estavam concentradas na dianteira direita do Porsche e a suspensão daquele lado estava arruinada. Quando o carro foi trazido para os boxes, um dos engenheiros da marca alemã que acompanhava o time brazuca, ao avaliar os danos no bólido, condenou a participação da equipe e ordenou a retirada do carro da prova.


Mas no melhor estilo “brasileiro não desiste nunca”, os mecânicos recolheram o carro para a garagem, que fica atrás do pit-lane, e começaram um trabalho de reconstrução do carro. Ao ver toda a movimentação e gana dos “mecas”, formou-se uma curiosa plateia para acompanhar o trabalho, que foi feito e concluído em aproximadamente 50 minutos. O pessoal conseguiu trocar todo o conjunto de suspensão dianteiro do lado afetado, o direito, e ainda fez todo o alinhamento do carro. Quando o carro finalmente foi empurrado em direção ao pit lane, uma salva de aplausos saudou o time brasileiro, em um misto de incentivo e admiração pela persistência e perseverança.






Coube ao paranaense Flávio Trindade a missão de voltar para a pista e validar o trabalho dos reparos realizados. Para a ótima surpresa de todos, Trindade informou pelo sistema de rádio que o Porsche 911 GT2 estava “melhor do que antes”.


O time brasileiro seguiu a prova em um excelente ritmo e não enfrentou grandes dificuldades. Ao final da maratona de 24 Horas e 604 voltas completadas, o resultado era a vigésima primeira colocação na classificação geral – de um total de 74 carros que largaram – e a ótima quarta colocação na classe GT2. Um excelente resultado para a equipe capitaneada por Dener Pires, e um feito que entrou para a história do automobilismo brasileiro.














Maurizio Sandro Sala conta a sua experiência em Daytona


Em 2017, tive a oportunidade de entrevistar o piloto brasileiro Maurizio Sandro Sala, para um especial do site SpeedOnline. Sala contou detalhes interessantes sobre a prova de longa duração americana, fazendo também um comparativo com as 24 Horas de Le Mans.


Maurizio Sandro Sala é um piloto brasileiro com vasta experiência em provas de longa duração. Participou por 3 oportunidades nas 24 Horas de Le Mans e correu duas vezes em Daytona. A primeira participação foi em 1994, com Porsche 911 Turbo da equipe Konrad: "nós estávamos bem, em primeiro na nossa categoria, a GT2, porém enfrentamos um problema mecânico, a quebra de uma correia da ventoinha", lembra Sala. Sobre a primeira experiência, Maurizio conta: "eu já tinha corrido provas longas anteriormente, já tinha feito as 24 Horas de Le Mans, já tinha bastante experiência neste tipo de prova, porém andar em oval eu não tinha andado e a experiência maior foi entrar na reta e ter que segurar o volante para o carro não descer." Sala complementa sobre a pista inclinada: "então você tem que segurar o volante para a direita para o carro ficar em cima do 'bumping', na verdade a reta é uma curva longa, então isso foi difícil de se acostumar no começo, você não relaxa na reta".


Ainda sobre o trecho do oval, Maurizio relata uma volta na pista: "em dois terços da pista utilizamos o oval; passa-se na frente do box, entramos no 'infield', que é a parte interna da pista, um traçado bem travado, depois entramos na reta entre a curva 1 e 2 do oval. No meio desse trecho, tem uma chicane chamada 'bus stop', para diminuir a velocidade. É nesse ponto que aconteciam mais acidentes, pois a desaceleração era muito grande e existe uma diferença muito significativa de velocidade entre as diferentes categorias, quando chegava ali amontoava tudo!". Sala conclui a primeira participação Daytona: "foi muito legal a primeira participação, andei bem, peguei logo a mão do carro, tínhamos bastante chance de vencer".


A segunda participação de Maurizio Sala foi em 1998, com o time totalmente brasileiro. O carro utilizado foi o Porsche 911 GT2, na evolução 993. "O André Lara Rezende e o Regis Schuch compraram o carro 'zero' da Porsche, inclusive a primeira vez que ele foi ligado foi na pista de Daytona. O carro era muito bom, não deu problema algum", revela Sala. Na prova, após o acidente com o piloto Regis Schuch, que danificou a suspensão dianteira, o carro foi recuperado pela equipe brasileira e voltou para a pista. "O carro continuou com o mesmo desempenho de antes do acidente", lembra Sala, o que denota a qualidade deste modelo da marca alemã.




Maurizio Sala em Daytona 1998



Maurizio, que correu em Le Mans com carros rápidos, na época do Grupo C, faz um comparativo com Daytona: "o traçado de Le Mans é muito mais difícil, mais rápido, é difícil de memorizar o traçado. Em Daytona o que chamava mais a atenção era a reta em declive, a pista em si era fácil de memorizar, eu achei Le Mans muito mais difícil".


Por fim, Sala lembra de fatos curiosos nas provas de 24 horas de duração em que participou: "em Daytona o público ficava muito próximo dos carros e dos pilotos, o paddock era liberado para os fãs. Em Le Mans o credenciamento era mais rigoroso, o contato do público com os participantes era mais difícil. Na prova americana, o público fica nos traillers, eles faziam churrasco, comiam, bebiam, dançavam e assistiam à corrida. Em Le Mans o público acampava no entorno do circuito. Na corrida em que fiz com a Mazda, eu andei no fim da noite e começo de madrugada e depois o final da madrugada e começo da manhã. Quando eu descia a reta, era possível notar o pessoal acordar, sair das barracas, escovar os dentes e te ver passando. A cada passagem na reta, era possível ver mais pessoas deixando o camping e indo ver a prova".



Os outros brasileiros nas 24 Horas de Daytona de 1998


Além do time 100% brasileiro, tivemos a participação de mais dois pilotos tupiniquins na edição de 1998 das 24 Horas de Daytona. Tony Kanaan, que naquele ano estrearia na Fórmula Cart pela equipe Tasman – havia sido campeão da Indy Lights no ano anterior, pela mesma equipe – disputou a prova com um Ford Mustang Cobra GT1 da equipe Tom Gloy Racing. Seus parceiros foram os norte-americanos Mike Borkowski e Robbie Buhl. O time disputou a prova na classe GT1 e, apesar de enfrentar problemas mecânicos, completaram 624 voltas e terminaram a prova na décima primeira posição na classificação geral e a terceira colocação na classe GT1.




Tony Kanaan disputou as 24 Horas de Daytona de 1998 neste Mustang Cobra




Raul Boesel foi outro piloto brasileiro a disputar as 24 Horas de Daytona em 1998. Competiu na classe GT1 com o poderoso Panoz-Ford da equipe Panoz-Visteon Racing, ao lado dos pilotos Andy Wallace, Scott Pruett e Doc Bundy. O time teve problemas de superaquecimento no Panoz e completaram 433 voltas, terminando a corrida na trigésima nona colocação na classificação geral.




O Panoz-Ford GT1 de Raul Boesel



Um comentário:

  1. Mais um capítulo memorável da história do nosso automobilismo. Meus parabéns pelo belo registro, não sabia que o Tony tinha corrido nessa prova.

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