A história diante dos nossos olhos. Assim nos sentíamos ao entrar no mítico circuito de mais de 13 quilômetros de Le Mans, para a disputa da 78ª edição da prova. Disputaríamos uma das principais provas do automobilismo mundial, ao lado do Grande Prêmio de Mônaco e das 500 Milhas de Indianápolis.
Mas, para competirmos nessa verdadeira prova de resistência, é necessária muita preparação. A começar pelos pilotos. Os quatro tiveram de aumentar os treinamentos físicos, com o intuito de melhorar a resistência e o tônus muscular para agüentar as várias horas de pilotagem. A alimentação também foi alterada. Passamos a ingerir bastante carboidratos e a hidratação começou muitos dias antes. O carro também foi todo revisado e as principais partes foram trocadas e checadas.
O time também se preparava. Os mecânicos, engenheiros e técnicos estudavam e planejavam cada trecho da corrida, cada parada nos boxes e troca de pilotos. Na conversa com nosso chefe de equipe, Gil de Ferran, muito se falou de poupar equipamento, de cautela, pois muitos competidores abandonam a prova por problemas mecânicos ou por acidentes.
A Honda, para essa prova, inscreveu mais um carro em nossa equipe. A trinca de pilotos é toda japonesa: Takuma Sato, Kasuki Nakajima e Hideki Mutoh. Dessa forma, nosso primeiro competidor estava dentro de casa, eram os nossos companheiros de equipe. Além, é claro, das outras equipes de fábrica que também competiam na nossa categoria, a LMP1, como a Audi, a Peugeot, a Aston Martin e a Mazda.
Os treinos foram muito bons e conseguimos progredir com o carro conforme andávamos. Inclusive nos treinos da noite, com a temperatura mais baixa, o carro se comportou muito bem. Na classificação, conseguimos uma excelente quarta posição, atrás de um Peugeot (o pole) e de dois Audis R15. Conseguimos deixar para trás o outro Peugeot, o terceiro Audi e os dois carros da Aston Martin, que pensávamos que seriam os nossos principais adversários. Nosso carro andava bem principalmente nas grandes retas Mulsanne, graças ao potente motor V12 da Honda. Segundo os cálculos da telemetria, chegávamos perto dos 390 Km/h! Ufa!
Enfim, o grande dia chegou. Acordamos no sábado e depois de um excelente café da manhã, no melhor estilo francês, rumamos para a pista. A largada só seria dada as 4 da tarde, mas ao meio-dia as arquibancadas e arredores do circuito já estavam lotados. Muitas pessoas acampam nas cercanias ou trazem os seus traillers para acompanhar a prova. E vêem de todas as partes da europa e do mundo. Ao andarmos pelo circuito no carro aberto, no desfile dos pilotos, vimos muitas bandeiras de vários países e de variadas marcas de carros. Era incrível sentir a vibração do público.
- Cara, tô arrepiado!, confessava Reginaldo.
- Do caralho isso aqui!, bradava Tarcísio.
Já Luiz Henrique não falava nada, apenas apreciava o momento único de boca aberta, literalmente. Já na minha cabeça, passava um filme, no melhor estilo túnel do tempo. Lembrei de imagens que vi de provas antigas, pilotagens épicas e provas históricas de Graham Hill, Jackie Ickx, Dan Gurney, Henri Pescarollo e muitos outros monstros do automobilismo mundial. Lembrei também de carros clássicos que venceram a prova, como Matra, Ferrari, Porsche 917, Ford GT40...
Voltamos aos boxes para repassarmos a estratégia da prova e os últimos detalhes antes da largada. As 3 da tarde, estávamos liberados para assistir, do pit wall, o desfile de carros antigos que venceram Le Mans. Nem preciso dizer que todos nós "babamos" ao ver os bólidos e o Luiz Henrique quase teve um troço ao ver e ouvir o Ford GT 40 laranja e azul claro da Gulf, que venceu Le Mans de 1966 a 1969.
Faltando 15 minutos para as quatro da tarde, o box seria aberto para que os carros dessem uma volta e formassem o grid de largada, para a partida, que seria lançada. Quem largaria seria Reginaldo, que após três horas de pilotagem entregaria o carro para Luiz Henrique. Tarcísio seria o próximo e eu fecharia o primeiro rodízio na pilotagem. Cada um pilotaria seis horas, em dois turnos de 3 horas, não seguidas.
Reginaldo deu uma volta e parou na reta dos boxes. Fomos todos para conversar com ele e saber do carro.
- Tá beleza, só preciso agora é largar bem e fugir de confusão, - falava Reginaldo, dentro do apertado cockpit do protótipo.
Mais uma apertada no cinto, uma checada nas sobreviseiras e nos retrovisores e uma conversa com Gil de Ferran pelo rádio e Reginaldo começava a sua concentração para a largada, enquanto a placa de 3 minutos subia. Era a hora de pular o muro dos pits para acompanhar o começo da prova. Os corações estavam a mil.
Depois de uma volta de aquecimento pelos 13 quilômetros da pista, lado a lado os bólidos chegavam na nossa frente. As 4 horas, o diretor de prova abaixava a bandeira verde os quase 60 carros largavam. Olho na tela para acompanhar o nosso carro. Reginaldo largou bem, com bastante cautela e não se envolveu em confusões, mantendo a quarta posição. O Audi passou o Peugeot e liderava a prova. Mais algumas curvas e eles chegavam na grande reta Mulsanne, que é cortada por duas chicanes. Reginaldo tentava aproveitar ao máximo o vácuo deixado pelo Audi à frente. Neste momento, a transmissão da TV corta para a câmera on-board do nosso carro. Dá para ver que Reginaldo se preocupa com os retrovisores, enquanto ajusta a carga do freio para a freada da primeira chicane. Dá para perceber também a grande velocidade que se alcança neste trecho. Depois de 3 minutos, todos completam a primeira volta. Era o começo da maratona e das 3 horas de pilotagem de Reginaldo.
Mais algumas voltas e os protótipos alcançavam os retardatários da GT1 e da GT2. São carros que andam bem mais lentos que os protótipos da LMP1 e LMP2. Para se ter uma idéia, nas grandes retas eles chegam a andar quase 150 Km/h mais lentos. É preciso muito cuidado ao ultrapassá-los, pois chega-se muito rápido neles. Reginaldo ia passando um a um, pacientemente esperando todos abrirem passagem. Com quase uma hora de prova, Reginaldo pára nos boxes para reabastecer e trocar os pneus. O carro primeiro é reabastecido, com o motor desligado. Depois os mecânicos atacam o carro para trocar as "gomas". Depois de quase dois minutos, Reginaldo apertar o botão de start e acorda o V12, para acelerar com vigor e voltar à prova.
Aproximando-se das 7 da noite, começa a anoitecer em Le Mans. Este é mais um momento crítico da prova, o famoso lusco-fusco. Reginaldo então pára nos boxes para reabastecer, trocar os pneus e entregar o carro para Luiz Henrique. Reginaldo tira o seu banco, pula para fora enquanto Luiz encaixa o seu banco e entra no cockpit. Reginaldo ajuda a afivelar o cinto e conectar os cabos do capacete. Luiz então partia para sua jornada de 3 horas.
Era noite em Le Mans. O festival dos faróis acesos pelo circuito trazia muitas armadilhas. No final da reta Mulsanne, um protótipo Porsche da LMP2 escapou de traseira e bateu nas barreiras de pneus. Apesar da destruição, o piloto saiu ileso, mas a bendeira amarela foi acionada por três voltas. No rádio, Gil de Ferran dava instruções ao jovem piloto.
- Atenção, não esquece de deixar os pneus aquecidos e fica de olho na temperatura da água e do óleo!
Próximo das nove da noite, acontece o que todos nós temíamos. Um Porsche da GT2 fecha a passagem de Luiz Henrique e acerta com a traseira a frente do nosso protótipo. Por sorte, o carro não rodou, somente saiu um pouco da pista, na parte gramada. Porém o carro estava avariado e precisava de reparos. Luiz xingava no rádio:
- Desgraçado, esse filho da mãe ele me fechou!
O azar é que os nossos boxes eram vizinhos ao do Porsche que nos acertou. O clima ficou tenso. Nossos mecânicos passaram a discutir com os mecânicos deles. Tarcísio começou a discutir com um dos pilotos da equipe e partiu para cima.
- Ô, seus filhos da puta, desgraçados, vocês jogaram aquela merda pra cima da gente, vai se ferrar!! - gritava em português, o que não adiantaria muito pois o piloto era alemão...
Reginaldo, que estava mais perto, ajudou a apartar a briga. Depois de muita discussão e da ameaça de punição por parte dos comissários desportivos para ambas equipes, todos voltaram para os seus boxes e a briga ali terminou.
Luiz parou o carro e a situação era preocupante. Era preciso trocar a carenagem dianteira e arrumar os dutos de ar que vão para os freios dianteiros. Ficamos ao todo 4 minutos nos boxes, o que nos custou a quarta posição. Luiz voltou para pista, acelerando furiosamente. Mais alguns minutos e era hora de parar nos boxes para entregar o carro para Tarcísio, as 10 da noite.
Tarcísio saiu e foi cumprir as suas primeiras 3 horas. Com meia hora de pilotagem, aproximadamente, começou a chover vigorosamente em Le Mans. Como se já não bastasse a dificuldade de pilotar à noite, agora Tarcísio tinha a pista molhada pela frente. Após parar para colocar os pneus "biscoito", nosso carro fazia bons tempos de volta, sempre alternando as melhores voltas com os Audis.
Por volta das 11h40 da noite, uma ótima notícia. O quarto colocado, um Peugeot abandonou a prova com problemas no câmbio. Voltávamos à quarta posição, atrás dos dois Audis R15 e do Peugeot que sobrou na prova e que agora liderava.
Gil conversou bastante com Tarcísio pelo rádio, ajudando com a posição dos retardatários e dando informações sobre a telemetria do carro. Já no final do seu primeiro turno de pilotagem, o Audi R15 que estava na terceira posição perde o controle na pista molhada, em uma curva de alta e roda na grama escorregadia. Ele demora para voltar à prova, e Tarcísio consegue ultrapassá-lo com uma bela manobra por dentro. Todos no box vibram e o piloto não deixa por menos.
- Uhuuuuu!! Eu passei, eu passei!!! Vibrava no rádio Tarcísio.
Ele me entregou o carro, exatamente às 00h00, na terceira posição. A chuva ainda persistia. Saí com cuidado dos boxes e comecei meu primeiro turno de pilotagem. No começo, dei algumas "traseiradas" por conta da pista molhada. Mas fui me acostumando com o acelerador e consegui imprimir um bom ritmo, negociando as ultrapassagens com os retardatários.
Não era mesmo o dia da Peugeot em Le Mans. O carro que liderava encostou quando faltavam vinte minutos para as duas da manhã, com muita fumaça na parte traseira, talvez com problemas no motor.
O Audi R15 então herdava a primeira posição e estávamos agora na segunda colocação. A previsão de que muitos acidentes e quebras aconteceriam estava se concretizando. As três da manhã entreguei o carro para Reginaldo cumprir o seu turno final. Neste momento a chuva havia cessado e a pista estava quase toda seca.
O carro comportava-se da melhor forma. Todas as temperaturas de água e óleo era mantidas em um ótimo nível e os freios não estavam dando dor de cabeça. Isso são excelentes notícias em uma prova longa como Le Mans.
As 6 da manhã, com um belíssimo nascer do sol, Reginaldo cumpria sua missão e entregava o carro para Luiz Henrique. Neste momento quase metade dos carros que largaram já tinham abandonado a prova. O cansaço era visível. Nossos mecânicos dormiam sentados, esperando a próxima parada nos pits. O Red Bull foi um excelente companheiro na longa madrugada.
Tarcísio preparava-se para assumir o protótipo quando o Audi líder pára nos boxes. De repente, desespero na equipe alemã. Não conseguem reabastecer o carro. Um problema no bocal do tanque de combustível toma tempo demais aos alemães, o suficiente para assumirmos a liderança na prova. Erámos os primeiros colocados em Le Mans!
Tarcísio assumiu a pilotagem na primeira colocação. Luiz Henrique estava satisfeito com seu trabalho finalizado e dava entrevista para o canal francês que cobria a prova.
- O carro está se comportando muito bem e tivemos sorte do nosso principal concorrente ter um problema nos boxes para assumir a liderança. Agora é abrir distência para manter a ponta, dizia Luiz ao repórter.
E foi isso que Tarcísio fez. Nas suas últimas três horas de pilotagem, imprimiu com maestria um excelente ritmo, constante o bastante para deixarmos 9 segundos de distância para o Audi R15. Foi então que ele me entregou o carro, para finalizar a prova.
A ansiedade era grande. Estávamos prestes a vencer em Le Mans com a nossa equipe, seria um feito inédito uma equipe brasileira com pilotos brasileiros vencer a maior prova de longa duração do mundo. Mas eu não contava com um imprevisto, digamos, inusitado. Faltando um pouco mais de uma hora e meia para o fim da prova, comecei a sentir dores fortes na perna direita, eram câimbras horríveis que repuxavam toda a perna. Reportei o problema pelo rádio e fui obrigado a parar nos boxes. O próximo piloto na sucessão da pilotagem seria Reginaldo. E foi ele que assumiu o carro para encerrar a prova.
Mas parecia que o preço para vencer a prova seria realmente caro. Com aproximadamente uma hora para o fim da prova e 8 segundos de vantagem para o segundo colocado, Reginaldo chama o rádio:
- Cara, os freios estão abaixando absurdamente, tomei um susto no final da reta, quase que passo reto!
- Regi, tenta poupar, tenta poupar! instruia Gil de Ferran.
Mas ele não podia fazer muita coisa. Os tempos de volta despencavam e Reginaldo fazia milagres dentro do cockpit.
- Que merda! gritava Tarcísio dentro dos boxes.
O Audi vinha chegando perigosamente. Mas como um só problema não é o bastante, faltando 4 voltas, a pressão do óleo começa a baixar. Nas curvas de baixa, Reginaldo se esforça para manter o giro alto e queima embreagem. Era magnífico o que ele fazia com o carro naquela situação.
Com duas voltas, a vantagem era de apenas dois segundos. Ao abrir a última volta, o Audi está colado em Reginaldo. Com quase 24 horas de prova, o líder e o vice-líder estavam separados por décimos de segundos. Nem preciso dizer que o público nas arquibancadas ia ao delírio!
Na grande reta, o Audi passa nosso protótipo. Mas Reginaldo não se desespera, entra no vácuo e um pouco antes da freada da última chicane, tira de lado e freia, com o pouco que restava do freio, coloca o carro de lado e consegue ultrapassar. Delírio no nosso box, todos vibram muito!
As últimas curvas são de sofrimento. O Audi coloca de um lado e Reginaldo fecha a porta, coloca de outro e fecha a porta mais uma vez. Eles fazem os últimos "esses" colados e Reginaldo cruza em primeiro.
- Ahhhhhhhhh!!!!!! Ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!! Ahhhhhhhhhhhhhhh! Não parava de gritar dentro do capacete Reginaldo. Nos boxes, todos se abraçavam, uns choravam, outros respiravam aliviados. Vencemos Le Mans!!
Ele cruza a linha e pára mais adiante. Solta os cintos e pula no capô do carro e de pé, cerra os punhos em pura vibração. Todos nós corremos até ele e nos abraçamos, comemorando a vitória. Nos encaminhamos para o pódio e neste momento acontece a tradicional invasão de pista do público insandecido.
A emoção toda conta de todos no alto do pódio quando o Hino Nacional brasileiro toca em Le Mans pela primeira vez. O gosto do champagne nunca foi tão especial.